Quando cruzei a linha de chegada da minha primeira prova de corrida, uma meia maratona, eu já sabia que não poderia ficar longe muito tempo dessa sensação. Da primeira maratona então… sabe aquele sentimento de criança? cai, machuca, se rala todo no brinquedo e quando termina quer ir de novo? é isso. Eu queria levantar e ir mais uma vez.

Esperei muito para que a maratona de porto alegre chegasse. Escolhi ela por ser em uma época do ano diferente, mais fria e também para aproveitar a nossa ida para visitar os pais do Fábio. Nessa eu estava com cabeça fervilhando, muita coisa acontecendo e estava difícil separar, tudo mexia muito com a minha autoconfiança, porém em nenhum momento eu cogitei não ir. Pensei que poderia não terminar, não ir bem nos treinos, qualquer coisa – eu ia.

Essa maratona foi mais leve pra mim. No primeiro treinamento eu nunca iria jantar fora antes de algum treino longo. Nessa eu colecionei rodízios de pizza no aniversário da minha avó, noite mexicana do aniversário do meu irmão e algumas idas ao banheiro no meio do treino foram necessárias. Ri, foquei minha cabeça que daria tudo certo, ouvi meu corpo e aprendi a deixar fluir a vida e a corrida ao mesmo tempo. Afinal, elas não podem nunca competir. Só agregar.

Fábio parou os treinos logo no início por conta de uma dor no pé que persistia. A última longa distância dele tinha sido em outubro do ano passado e mesmo assim, ele pensava em fazer os 21km. Quando chegamos para retirar o kit da prova e trocar a maratona para a meia, descobrimos que tinha uma taxa de 50 reais. Resultado: Fábio resolveu correr e ver no que ia dar.

Na semana da maratona eu estava bem nervosa e concentrada. Eu sabia que precisaria dar todas as minhas reservas. Com a possibilidade de chuva, frio, vento e tudo quanto é coisa, eu abandonei os “tomara que”, tomara que não menstrue, não chova, não faça sol demais, não tenha isso, aquilo. Eu estava com a mala preparada para o apocalipse e curtir cada km.

No dia da prova lá estávamos nós na garoa, vento e rindo feito bestas, com condições que nunca tinha treinado. Estava com a cabeça tão longe que quase passei a largada sem ligar meu relógio. Saímos juntos e antes mesmo do 1km, Fabinho me disse que seguiria no seu ritmo. Me mantive no meu caminho, olhando ao redor quem estava por perto. A maratona de Porto é famosa no Brasil por ter um percurso plano, muita gente vai para lá para bater seu melhor tempo e conseguir índice para Boston. Foi uma prova mais silenciosa e cada um estava no seu universo fazendo o que treinou para fazer.

A prova passou muito rápida pra mim. Olhei para o relógio e já estava no 10km, tinha que me policiar para não esquecer de tomar o gel de carboidrato e pegar a água e isotônico no caminho. A chuva deu uma trégua, tirei a capa de chuva que estava amarrada na minha cintura e não percebia o pé encharcado, cólica e o vento. Correr na chuva pode ter muitos contras, mas a sensação de liberdade, aquela inocente de quando somos crianças, é indescritível. Me senti mais livre do que nunca.

No 18km eu vi Fábio passando pelo sentido oposto e gritei “vai 42?” e ele rindo de sí mesmo me disse “agora não tem jeito, tô ferrado”. No km20 eu senti muita vontade de ir ao banheiro, mas a fila era grande e o próximo demoraria mais 5km, o que me desanimou muito. Já tinha lido que correr no frio da mais vontade de fazer xixi que no calor e ouvi duas moças com lá seus 40 anos na minha frente falando que tinham feito xixi ali mesmo, tinha lido tanta gente que fez isso e pensei “ué, já tô molhada mesmo”. E, como a amiga dela disse: foi o batismo da corrida. Peguei um copo de água, me molhei e segui no meu universo particular. Eu sentia que se parasse minhas pernas iriam esfriar, endurecer e voltar seria mais difícil.

No km22 eu mandei uma foto pra família e gravei um stories. Olhei no relógio e minha meia maratona tinha sido em 2h e 8m, eu conseguiria fechar a prova antes de 4h20 minutos se continuasse naquele ritmo. Uma moça olhou pra mim e disse “agora é só voltar pra casa”, quando ouvi “casa” me lembrei de tanta gente. Do aniversário da minha amiga que tinha sido na noite anterior e que tinha tanta gente que eu amava, da minha mãe, meu pai, meus irmãos, meu sobrinho, do Fábio. Eu não via a hora de chegar. Dali até os quase 30km tudo apenas fluía. Tinha treinado a estratégia de ligar meu MP3 só na metade do trajeto para dar mais um ânimo.

No km29 eu vi Fábio parado na rua. Tirei meu fone e ele me disse que pegaria um uber até a chegada para me esperar, que não iria até os 42km. Eu balancei a cabeça, demos um beijo e não deu tempo de dizer que eu o amava e nem obrigada por me esperar ali. No fundo eu pensava que poderia cruzar a linha de chegada com ele. Agora era só eu por mim mesma. Estava bem hidratada, os carboidratos tinham caído bem e tentei pensar que eu tinha começado a correr naquele momento e que só faltam 12km. Eu só podia contar comigo.

Sorrir era difícil. As pernas pesavam por conta dos pés encharcados e super gelados, não sentia mais a ponta deles batendo no asfalto. Meu ritmo tinha caído muito. Por mais que eu acelerasse, não saía do lugar. Era desesperador. Senti uma solidão pairando em mim. Como se não tivesse mais ninguém ali comigo, como se eu dependesse só de mim para conseguir. E era, sempre foi. Naquele instante eu pensei que não iria chegar. Um grupo de pessoas na rua gritaram, coloquei uma música que me inspirava… Era difícil. Dores começavam a aparecer e o pensamento de parar aumentava. Resolvi tentar secar minhas pernas um pouco para ver se diminuía a sensação gelada do vento que fazia doer os ossos do joelho. Nada. A dor estava na minha cabeça.


Encontrei uma parceira de corrida no meio do caminho, conversamos um pouco e foi quando percebi que era exatamente ali que eu queria estar. Eu não tinha outro lugar do mundo que queria viver. Eu tinha sonhado com aquele dia. Eu queria aquilo. Continuei com o ritmo bem abaixo e não faria no tempo que pensava em fazer. Mandei um áudio sofrido para o Fábio dizendo que estava no km40. Tinham pessoas na rua e uma delas olhou nos meus olhos e disse “VOCÊ JÁ CONSEGUIU”. Foi quando comecei a ver a ponta do shopping de onde largamos. Sorri aliviada, mas no fundo eu não queria que acabasse.

A dor, o peso dos pés, meu estado nada aconchegante não me faziam diferença, eu já não desviava das poças d’ água. Minha mente era minha. Acelerei um pouco e o vento com a chuva se misturavam nas minhas lágrimas inocentes de alegria. Acho que todos pensavam que eu era louca sorrindo e chorando. Eu não sei explicar. Corria e me sentia com 9 anos de idade. Eu estava em paz. Este foi o momento da minha vida em que cheguei mais perto de voar.

Eu sabia que o volume que eu tinha reduzido nos treinos iriam fazer falta para manter o ritmo nos últimos kms. Não foi o tempo que imaginei, mas os números não importavam mais com a completude que eu sentia. Meu relógio bateu bem antes de chegar a medida 42.3km, parei: 4h28m, 16 minutos mais rápido do que a primeira. Ouvia os gritos, alguém que disse meu nome e ali estava o que eu tanto queria: chegar para recomeçar.

Cruzei a linha de chegada acompanhada de mim. Uma versão nova.

Uma versão que estava disposta a viver qualquer coisa, à qualquer custo, contanto que pudesse sentir a vida pulsando dentro de mim como foi neste dia.

Cada chegada é um recomeço.