Elis chegou pra me lembrar que a vida é inédita. Ninguém entra no mesmo rio duas vezes. Então, eu sabia: apesar de não ser meu primeiro parto, nada seria igual. E não foi. 

Depois de semanas de repouso e alguns procedimentos para inibir a tentativa de parto prematuro (com 31 semanas), comecei a sentir mais atividade uterina. Com 36 semanas e alguns dias, precisei me acostumar com a ideia de que estava chegando o momento em que eu poderia gritar sem medo, em alto, bom som e com todas as letras: vem, filha.

Foi então que no dia 24.11, uma quinta, eu senti uma sequência de contrações pela manhã. De 15 em 15 min que durou por uma hora. A dor ainda era inexistente, mas cada contração me convocava para estar presente. Meu útero já anunciava que algo estava para acontecer. Seguida vida. Continuei observando e, no período da tarde mais uma vez a sequência aconteceu. A essa altura eu imaginava que poderia conhecer nossa menina dentro de alguns dias… nunca imaginei que poderia ser naquele mesmo dia e até mesmo em horas. Como toda nossa rede de apoio está longe, achei que seria esperto pedir a ajuda para nossa amiga caso precisasse ficar com Levi. Afinal, Fabinho sempre deixou claro que gostaria de estar presente nesse momento e eu sabia que em alguns momentos desafiadores só nós dois poderíamos nos entender nesse renascimento. Dessa vez, eu já não duvidava mais dos sinais do meu corpo e nem da minha leitura sobre eles. 
– Amor, vamos conhecer ela hoje. Eu disse com os olhos carregados de lágrimas e uma pitada de medo no coração. Acho que ele ainda não acreditava.

Eram 16h. Não sentia dores, mas percebia o enrijecer na barriga. Aproveitei para terminar os últimos trabalhos, sentei para assistir ao jogo do Brasil.

As 18h, no final do jogo, o que estava descompassado, espaçado e sem dor, ganhou ritmo, tempo e pontadas.
De 7 em 7 minutos. 5 em 5 minutos. Tudo foi rápido. 
Agora sim, começara o trabalho. O parto. sinalizei a nossa enfermeira e nossa médica. E elas me orientaram tomar um banho longo e relaxante. E eu não pensei duas vezes. Afinal, depois dos filhos, ligar o chuveiro é como entrar em um portal. O tempo, o silêncio, a água… tudo é um convite para o teletransporte. Com as contrações me pedindo presença, eu fui para longe. Longe. Lembrei que naquele mesmo horário no dia 09/03/2020 eu estava tomando banho e sustentando cada tijolo das paredes com meu corpo. Levi anunciava sua chegada e eu não queria acreditar. Naquela altura de tudo que estava sentindo, eu sabia que Elis estava a caminho. Mas, saber não deixava mais fácil. Entre lágrimas e a pressão forte no quadril, me tornei uma com cada contração. Fui longe, tão longe que não sabia mais cronometrar. Mas sabia que tinham mudado. 
3 em 3 minutos. Elis vinha com tudo de si. Mas eu ainda não queria encarar tudo de mim.
A parte boa de já ter vivido algo é justamente saber como é, mas a parte desafiadora é também já saber como é. A comparação, a expectativa ou, no meu caso, a falta dela… De alguma forma me forçava a não pensar que este parto seria como do Levi que, mesmo com a surpresa da prematuridade, foi um parto rápido e dentro do que eu imaginava de dor. Hoje, anos depois, de contração em contração, eu parecia que sabotava minha força, minha entrega, a parte que sonha. Não queria lidar que eu tinha toda força necessária dentro de mim. Não a força física, mas a força que se agarra e se permite viver nem que seja o mínimo de parte boa em situações difíceis. Por saber demais, era difícil negociar com meus sentimentos. Eu sabia que a dor existiria.
Apesar de não lembrar e nem descrever, eu sabia da dor, mas precisava lembrar da vida. 
Passei toda gestação buscando me permitir. Sonhar com um parto respeitoso, intenso e de alma. Ali, enquanto as águas ainda caiam nas minhas costas, eu repetia incansavelmente o poema de Eva Lopez Martinez. Cada palavra martelava em meu coração o que eu já fui, era e seria. Em silêncio e aos berros. Seria. Cada palavra me deu forças para ligar para nossa enfermeira e dizer: Vem pra cá? eu acho que é hora.
Desci as escadas e meu filho terminava seu jantar. Agachei, olhei nos seus olhos e vi tudo. Toda vida entre nós. Não só o nosso parto, mas tudo que ultrapassamos e construímos juntos nesses 2 anos e 7 meses. O abracei e em breves palavras disse que iria encontrar com a Elis. Dizer para ele toda verdade usando palavras inocentes, me trouxe a certeza de que eu poderia me reinventar mais uma vez. Só precisaria aceitar que eu não era a mesma. Minha filha chegou em um momento em que eu estava mais olhando pra dentro de mim. O auge do meu cuidado. O ápice da minha liberdade. Chegou reforçando que a vida não iria mais assustar. E não seria hoje. Ou seria. Mas, eu continuaria só para senti-la em meu peito. O controle que tanto me assombrou no primeiro parto, dessa vez, deu lugar para a paz de que cada coisa acharia o seu lugar. E, no fim, tudo que eu desisti de controlar, não saiu do controle. Aconteceu. A medida em que me descontrolei, aconteci.
Era 19:30 quando a Camila, nossa EO, chegou e com toda sua leveza perguntou como eu estava, o que tinha comido, qual posição estava melhor. Massageou meu quadril, ouviu coração de Elis e perguntou se eu desejava fazer o toque para sabermos como o que estávamos lidando para ir até outra cidade. Sim, preferi.
– É, andou.. e como!
Vi no seu rosto uma surpresa.
– Quanto?
– Está em 6!
Sem dor, sem me mexer muito, sem nem pensar. Uma parte de mim pensava que não estava acontecendo.. outra já sabia que tudo dali em diante seria diferente. A partir dos 7 para 10 de dilatação é um novo rumo, um outro planeta. Um portal. Então, começamos a combinar de esperar a minha amiga chegar e tentar esperar Fabinho colocar Levi para dormir e ir junto para a maternidade. Deitada, pedi para Camila me explicar um pouco sobre analgesia e alguns detalhes que eu nunca cogitaria pensar com Levi pois queria muito vivenciar um parto natural. Dessa vez eu ainda queria, mas gostaria de entender e me informar melhor para saber o momento certo.
Perto das 21h, a Re chegou. Me envolveu em um abraço de força e afago. Um abraço com um toque de amiga e também de mãe. Um abraço que eu levei comigo durante todas as vezes que nos encontramos nas semanas de gestação. Ela sabia o misto de muitas emoções, os medos, as certezas e a leveza que pairava dentro de mim. Foi o abraço que eu precisava.
Por um instante pensei que iríamos sem Fabinho, mas algo dentro de mim dizia que não daria tempo dele chegar depois. Era aquela hora. Mas, como contar que seria possível? Olhando pela câmera vejo que meu filho começa a se acalmar. Fabinho vira o corpo e consegue sair. Era hora.
Carregamos o carro, nos despedimos os cachorros, sofrendo fiz o ultimo xixi. A pior posição para sentir uma concentração é sentada. Quando desci as escadas eu percebi que apesar de ser um trajeto curto de 35 minutos, não seria fácil. Meu corpo precisaria encontrar formas de lidar. 
O carro andara 1km e eu não encontrava posição. Nada. Ali, comecei a engolir água. Percebi que as concentrações estavam mais próximas ainda, mais longas, mais fortes. A dor subia pelas minhas coxas e já tomava tudo. me sufocava de mim. Eu não conseguia puxar o ar, tão pouco soltá-lo. Estar ali se tornou um pedaço de pesadelo. Coloquei a playlist que montei em 2020 e sempre escutava quando precisava retomar minhas forças mais sensíveis. Cantava nos intervalos tentando invocar toda ocitocina possível. Contava os minutos. Apertava minhas costas contra a porta. Me retorcia com o cinto. Subi no banco.
Gritava. Sem. Som. Gritava. Sem. Ar.
Disse infinitas vezes que não conseguiria. Eu achava que estava só pensando, mas Fabinho me respondia: você consegue. Dizia com tanta firmeza, mas eu não me convencia. A dor estava mais forte que tudo em mim.
Me soltei do meu eixo.
Agachada e trançando as pernas vi que faltavam 5 minutos para chegar. Chegar… e depois? Depois eu precisaria continuar lidando com aquilo por mais sabe lá até quanto tempo. Eu não poderia. A-go-ni-a.
Sentada na cadeira de rodas e sendo empurrada para a triagem encontrei minha médica. Ela tentava me fazer voltar para meu coração, para o meu motivo de estar ali, mas eu mal conseguia saber onde estava. Eu não reconhecia nada. Sendo empurrada para um quarto compartilhado, entro no banheiro, arranco o vestido e me jogo frente a água quente. Apertavam meu quadril. Eu sentava. Agachava. Levantava. Prostrada em uma banqueta. Sinto o espaço cheio, mas não vejo mais ninguém ali. Não tinha olhos para mais nada. Gritava pra fora um pouco do que se desfazia por dentro de mim. Com Fabinho ao meu lado, eu dizia: Por que está doendo tanto assim? eu quero analgesia. Eu não vou aguentar até o fim.
Minha lombar queimava, meu útero se retorcia, uma bola de fogo nas minhas ancas se formava. Sangue. Estava tudo bem? Como meu corpo era capaz daquilo? Por quanto tempo aguentaria?
eu que nunca gritei… urrava.
Via pelos olhos do meu marido que ele não me reconhecia, mas que ele queria conhecer. Ele estava ali pra aquela mulher, por esse bicho que ele acreditava que tinha luz dentro para iluminar toda cidade. Por ela. Elis. Ele sabia, eu não. E o não saber quanto tempo aquilo poderia durar acabava com a minha fé. Foi quando senti a Camila me abraçar e dizer: agora, você não tem dor. Respira. lembra que eu te disse dos últimos 20 minutos? os que mais doem? Os que você quer analgesia? são estes! Mas são os últimos!!!
Pedi para me tocarem. 9 para 10 cm. Era verdade.. já estava no fim. Já estávamos por um triz do nosso encontro. Mas quanto tempo eu estava ali? tudo era confuso. Me pediram para me levantar para ir até a sala de parto e, em pé pendurada no pescoço do meu marido, eu sinto e digo em palavras bem pronunciadas:
– Está saindo.
Eu não sabia se era bebê, cocô, os dois, ou o quê. Sentia uma mão embaixo, mais mãos me guiando para ir até a maca. Deitada. era. ainda. pior. O trajeto de 5 segundos parecia eterno.
Quando chegamos… eu abro meu mundo. Sinto uma contração e fecho os olhos. Me rendo. Não existe mais nada. Apenas o grito irreconhecível da minha nova voz. Apenas o toque do meu marido nos meus ombros. Apenas a voz de duas mulheres que olharam nos meus olhos e disseram: É a hora da Elis. Só respira fundo pra ela. Respira fundo e solta.
Ninguém me pediu mais força. Ninguém me dirigiu. Pois não precisava. Ali, fiz as pazes com a dor e, assim, ela passou a existir e trabalhar a meu favor. A força estava em abraçar minha fraqueza. A força era para respirar fundo mesmo perdendo ritmo. A força é sentir. Então, sentimos força.
..E senti. Saindo. Ficando.
Elis saía para o mundo. Em mim ficava a confiança.

Sem laceração, sem força de cocô, sem puxo dirigido, mas com pressa. Ela veio. Abro meus olhos e, sem perceber, nem acredito que a vejo. Todo esforço, todo suor, sangue e medos que pareciam tão grandes, passaram a ser parte.
Houve vida. Uma vida nova que pulsava no meu peito. O cheiro de vernix. Os cabelos dela na minha boca. Eu sentia seu coração, seu toque leve no meio queixo enquanto minhas pernas ainda flutuavam. Agora, pela magia. Elis, sua existência estremeceu tudo. Eu nunca mais duvido.
Olho para o relógio e desacredito quando vejo que são 22:20h. Ativamente, em menos de 3:30hs que tudo começou. Em menos de 40 minutos que chegamos, a vida aconteceu. E tudo que eu sonhava, de alguma forma, tomou a forma que foi precisa para acontecer na realidade.
Elis, eu precisava viver você. Todo processo. Tudo ao seu jeito. Eu precisava entrar nesse rio outra vez.
Te trazer ao mundo me trouxe vida. Me trouxe para exatamente onde eu preciso estar agora: sentindo tudo, pois nada será igual. Mas será extraordinariamente necessário. Eu não duvido.
Eu não me perco nesse novo rio… me junto. me uno. Seremos oceano.
Elis, minha filha, você é inédita 🧡 juntos, seremos.

Médica: @erikanerusago
Enf. Obstétrica: @camila.goncales
Pediatra: @dra.carolreiche